domingo, 29 de setembro de 2019

191 e 231- inglês: fato ou fake

O dia 1º de abril é o dia da mentira, por isso muitas postagens falsas caem na rede. Mas..infelizmente não é só nesse dia que vemos muitas fakes circulando por aí. Como identificar?
O G1 traz várias dicas:
1- Checar a imagem
Se a imagem estiver publicada na internet, é possível clicar sobre ela com o botão direito do mouse e escolher a opção "procurar imagem no Google". A busca vai revelar as outras vezes que a imagem foi publicada. Por esse caminho, é possível saber se a imagem compartilhada é antiga e foi usada para construir a informação apresentada como nova ou se é, de fato, recente, de algo que acabou de acontecer. Da mesma forma é possível saber se a imagem é de uma localidade diferente daquela narrada pela mensagem a ser checada.
2-  Checar contas
Ao receber o print de um tuíte atribuído a uma personalidade, a primeira atitude é conferir se o perfil tem o símbolo azul de conta verificada.
O endereço que começa com @ é igual ao endereço conhecido da mesma conta? A imagem do print tem alguma mancha que indique montagem do endereço? A foto é equivalente à imagem conhecida do mesmo perfil? O número de seguidores e de postagens bate com o perfil da personalidade ou empresa? As informações sobre o site do autor da conta levam de fato à página do autor da conta?
3- Videos e imagens
Quando o vídeo está publicado no Facebook, é possível descobrir o endereço clicando com o botão direito do mouse sobre o vídeo e na opção mostrar a URL do vídeo.
4- Contas
É possível verificar a autenticidade de páginas atribuídas a empresas e pessoas no Facebook. Se a página tiver um selo azul ao lado do nome do usuário, isso significa que o Facebook confirma que esse é o perfil autêntico da personalidade. Mas dá para ir além. Olhar detalhes como o número de seguidores ou de curtidas e a data de criação é essencial para ver se combina com o perfil conhecido.
5- Checagem de texto
A última dica é sobre verificar se um texto publicado na internet apresentando algo como novidade realmente é atual ou se foi escrito há tempos, em outro contexto. 
O trabalho é.... levar para sala de aula postagens... para vermos se é fato  ou fake.
Pode ser realizado em duplas.

quinta-feira, 19 de setembro de 2019

191 e turma do Michel


Coração materno (Paulo Mendes Campos)
Duas horas da tarde. Ali no inicio do Morro da Viúva fizeram sinal: duas senhoras, ambas de cabelos brancos, preparavam-se para entrar no lotação, quando o motorista gritou: “Um lugar só”. A velhinha mais velha, já com o pé colocado no carro com imensa dificuldade, conseguiu retirar a perna comprometida, com dificuldade ainda maior, sob protestos persuasivos da velha mais moça, que dizia:
- Vai mamãe, vai a senhora, eu vou em outro.
A mãe se desmanchando em timidez, medo e bondade, sorria:
- Não, minha filha, eu não posso te deixar aqui sozinha.
- Vai, mamãe.
- Não, minha filha.
- Pelo amor de Deus, mãe; o homem está esperando.
- Mas... minha filha?!
Os passageiros aguardavam com a tolerante paciência de quem tem ou já teve mãe. O motorista fez força ( e o conseguiu, parabéns) par refrear a sua fúria de Averno.
- Vai, mãezinha; aqui neste ponto é difícil arranjar dois lugares.
- Não posso te deixar sozinha, minha filha. Nunca!
Diante do impasse, levantou-se, resoluto, um senhor sentado no banco da frente, oferecendo-se para ir em pé, as duas senhoras iriam sentadas. Ah, mas isso não, aparteou o motorista, era contra o regulamento, dava multa. O amável passageiro descompôs o regulamento do trafego e os demais regulamentos: eram desumanos. Ao pé da calçada, o torneio sentimental de mãe e filha continuava.
- Vai, vai, mamãe.
- Não posso ir sem você, minha filha.
Quem viu a necessidade eventual de perder docemente a paciência foi a filha. Usando de energia adequada ao momento, segurou o braço da velhinha (mas velhinha mesmo, frágil, frágil), empurrou-a com o mínimo de força necessária, proferiu uma ordem imperiosa:
- Vai, mãe.
E a velha mais moça se afastou em passadas compridas, impedindo a contramarcha da velha mais velha, que estava no limite extremo de sua timidez, e não teve outro jeito senão agarrar-se ao braço do motorista, entrar penosamente, sorrir pedindo perdão para todos os passageiros. Ajeitou-se no banco, esperou o barulho do motor e comentou para a vizinha (que a olhava, compreendendo tudo, as velhas, as mães, os cosmos):
- Coitadinha! Eu fico morrendo de deixar ela aí, só, tão longe!
Longe de onde? Das entranhas que criaram uma menina. Longe. Só.
A viagem para o centro foi recomeçada, sem novidades, todos voltaram para dentro de si mesmos, esquecidos do episodio. A mãe, no entanto, furtiva (certa de que já causara bastante transtornos naquele dia) inspecionava todos os lotações que ultrapassavam o nosso, aflita em sua inquietude, buscando lobrigar a filha. Mas foi só, quando o lotação entrou na Avenida, e parou diante de um sinal, que, enfim, a velha mais moça, a filha, apareceu em um lotação ao nosso lado. As duas se sorriram como depois de uma longa e apreensiva travessia.
A velhinha chegou a fazer graça:
- Graças a Deus, minha filha! Você ainda chegou antes de mim.
- Eu não disse, mãe, que não tinha perigo?
A filha desceu na esquina, chegou ate perto da janela do nosso lotação, segurou a mão de sua mãe:
- Agora vai direitinha, viu?
- Você pode ir descansada, minha filha.
O lotação arrancou de novo, gestos de adeus, a harmonia voltou ao rosto da nossa velhinha, que tranqüilizou também a vizinha de banco:
- Ela vai trabalhar no Ministério; eu vou para casa; moro no Rio Comprido.
1.        Veja que o autor se preocupa em situar no tempo a cena que vai contar: “duas horas da tarde”. Isso se deve ao fato de:
a-        ser o horário em que há o menor numero de lotações nas ruas
b-       ser hora de bastante movimento
c-        ser o horário habitual das duas senhoras saírem de casa
d-       ele querer mostrar que já era bastante tarde
e-        ele quer narrar a cena com todos os seus detalhes
2.        O autor diz que “a mãe se desmanchando em timidez, medo e bondade, sorria”. As atitudes que comprovam os sentimentos da mãe, descritos pelo cronista, são todas essas, exceto:
a-        ela envergonhava-se da cena a que os passageiros assistiam
b-       ela sentia medo porque o lotação poderia arrancar de repente
c-        mostrava-se temerosa por deixar a filha sozinha
d-       pensava mais na filha do que em si mesma
e-        ela queria ser gentil com a filha
3.        Ao dizer que “o motorista fez força (e o conseguiu, parabéns), para refrear sua fúria”, Paulo Mendes mostra-se:
a-        Nervoso                                                 d- revoltado
b-       Irônico                                                   e-conformado
c-        aliviado
4.        O cronista diz que “os passageiros aguardavam com a tolerante paciência de quem tem ou já teve mãe”. Com isso, ele mostra que os passageiros assistiam à cena com:
a-        enternecida paciência                                             d- amorosa delicadeza
b-       irritada paciência                                    e- frio desinteresse
c-        tolerante paciência
5.        Respondidas as questões anteriores, você pode concluir que o principal sentimento da mãe em relação à filha era de:
a-        Piedade                                   d- proteção
b-       Carinho                                  e- compreensão
c-        abnegação
6.        Quando, finalmente, a filha resolve a questão, empurrando a mãe para dentro do lotação, ela se mostra:
a-        Resoluta                                                 d- ríspida
b-       Violenta                                                 e- grosseira
c-        irritada
7.        E a velha, ao entrar no lotação, mostra-se:
a-        Irritada                                   d- amolada
b-       Impaciente                              e- decepcionada
c-        humilde
8.        Ao comentar com a vizinha: “Coitadinha! Eu fico morrendo de pena de deixar ela aí, só, tão longe!”, a mãe queria realmente:
a-        desabafar toda a preocupação de que estava tomada
b-       satisfazer a curiosidade da vizinha
c-        satisfazer a curiosidade dos passageiros
d-       mostrar sua preocupação com a filha
e-        justificar-se do incomodo que causara
9.        “Longe de onde? Das entranhas que criaram uma menina. Longe. Só”. A alternativa que decodifica de maneira mais completa a frase é:
a-        a filha ficara muito longe da mãe que partira num lotação
b-       a filha ficara longe da mãe que via nela ainda uma criança
c-        a filha já não era aquela menina de outrora
d-       aquela mãe considerava a filha uma criança ainda
e-        aquela mãe não se conformava nunca de ver a filha longe
10.     Você deve ter notado que, no 1º parágrafo, o autor refere-se às personagens como duas senhoras de cabelos brancos: a velhinha mais velha e a velhinha mais moça. Ele não quer mostrar o parentensco entre as duas, de inicio, porque:
a-        quer mostrar a diferença de idade entre as duas
b-       quer mostrar que não havia diferença de idade entre elas
c-        quer mostrar ao leitor que ambas são muito velhas
d-       quer mostrar ao leitor que elas tinham alguma coisa em comum
e-        quer mostrar que não fazia diferença o fato de serem mãe e filha



Turma do Michel- apenas baixem para trabalharmos em sala de aula...


MISSA DO GALO

Nunca pude entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta. Era noite de Natal. Havendo ajustado com um vizinho irmos à missa do galo, preferi não dormir; combinei que eu iria acordá-lo à meia-noite.
A casa em que eu estava hospedado era a do escrivão Meneses, que fora casado, em primeiras núpcias, com uma de minhas primas. A segunda mulher, Conceição, e a mãe desta acolheram-me bem, quando vim de Mangaratiba para o Rio de Janeiro, meses antes, a estudar preparatórios. Vivia tranqüilo, naquela casa assobradada da rua do Senado, com os meus livros, poucas relações, alguns passeios. A família era pequena, o escrivão, a mulher, a sogra e duas escravas. Costumes velhos. Às dez horas da noite toda a gente estava nos quartos; às dez e meia a casa dormia. Nunca tinha ido ao teatro, e mais de uma vez, ouvindo dizer ao Meneses que ia ao teatro, pedi-lhe que me levasse consigo. Nessas ocasiões, a sogra fazia uma careta, e as escravas riam à socapa; ele não respondia, vestia-se, saía e só tornava na manhã seguinte. Mais tarde é que eu soube que o teatro era um eufemismo em ação. Meneses trazia amores com uma senhora, separada do marido, e dormia fora de casa uma vez por semana. Conceição padecera, a princípio, com a existência da comborça; mas, afinal, resignara-se, acostumara-se, e acabou achando que era muito direito.
Boa Conceição! Chamavam-lhe "a santa", e fazia jus ao título, tão facilmente suportava os esquecimentos do marido. Em verdade, era um temperamento moderado, sem extremos, nem grandes lágrimas, nem grandes risos. No capítulo de que trato, dava para maometana; aceitaria um harém, com as aparências salvas. Deus me perdoe, se a julgo mal. Tudo nela era atenuado e passivo. O próprio rosto era mediano, nem bonito nem feio. Era o que chamamos uma pessoa simpática. Não dizia mal de ninguém, perdoava tudo. Não sabia odiar; pode ser até que não soubesse amar.
Naquela noite de Natal foi o escrivão ao teatro. Era pelos anos de 1861 ou 1862. Eu já devia estar em Mangaratiba, em férias; mas fiquei até o Natal para ver "a missa do galo na Corte". A família recolheu-se à hora do costume; eu meti-me na sala da frente, vestido e pronto. Dali passaria ao corredor da entrada e sairia sem acordar ninguém. Tinha três chaves a porta; uma estava com o escrivão, eu levaria outra, a terceira ficava em casa.
- Mas, Sr. Nogueira, que fará você todo esse tempo? perguntou-me a mãe de Conceição.
- Leio, D. Inácia.
Tinha comigo um romance, os Três Mosqueteiros, velha tradução creio do Jornal do Comércio. Sentei-me à mesa que havia no centro da sala, e à luz de um candeeiro de querosene, enquanto a casa dormia, trepei ainda uma vez ao cavalo magro de D’Artagnan e fui-me às aventuras. Dentro em pouco estava completamente ébrio de Dumas. Os minutos voavam, ao contrário do que costumam fazer, quando são de espera; ouvi bater onze horas, mas quase sem dar por elas, um acaso. Entretanto, um pequeno rumor que ouvi dentro veio acordar-me da leitura. Eram uns passos no corredor que ia da sala de visitas à de jantar; levantei a cabeça; logo depois vi assomar à porta da sala o vulto de Conceição.
- Ainda não foi? Perguntou ela.
- Não fui; parece que ainda não é meia-noite.
- Que paciência!
Conceição entrou na sala, arrastando as chinelinhas da a1cova. Vestia um roupão branco, mal apanhado na cintura. Sendo magra, tinha um ar de visão romântica, não disparatada com o meu livro de aventuras. Fechei o livro; ela foi sentar-se na cadeira que ficava defronte de mim, perto do canapé. Como eu lhe perguntasse se a havia acordado, sem querer, fazendo barulho, respondeu com presteza:
- Não! qual! Acordei por acordar.
Fitei-a um pouco e duvidei da afirmativa. Os olhos não eram de pessoa que acabasse de dormir; pareciam não ter ainda pegado no sono. Essa observação, porém, que valeria alguma coisa em outro espírito, depressa a botei fora, sem advertir que talvez não dormisse justamente por minha causa, e mentisse para me não afligir ou aborrecer. Já disse que ela era boa, muito boa.
- Mas a hora já há de estar próxima, disse eu.
- Que paciência a sua de esperar acordado, enquanto o vizinho dorme! E esperar sozinho! Não tem medo de almas do outro mundo? Eu cuidei que se assustasse quando me viu.
- Quando ouvi os passos estranhei; mas a senhora apareceu logo.
- Que é que estava lendo? Não diga, já sei, é o romance dos Mosqueteiros.
- Justamente: é muito bonito.
- Gosta de romances?
- Gosto.
- Já leu a Moreninha?
- Do Dr. Macedo? Tenho lá em Mangaratiba.
- Eu gosto muito de romances, mas leio pouco, por falta de tempo. Que romances é que você tem lido?
Comecei a dizer-lhe os nomes de alguns. Conceição ouvia-me com a cabeça reclinada no espaldar, enfiando os olhos por entre as pálpebras meio-cerradas, sem os tirar de mim. De vez em quando passava a língua pelos beiços, para umedecê-los. Quando acabei de falar, não me disse nada; ficamos assim alguns segundos. Em seguida, vi-a endireitar a cabeça, cruzar os dedos e sobre eles pousar o queixo, tendo os cotovelos nos braços da cadeira, tudo sem desviar de mim os grandes olhos espertos.
- Talvez esteja aborrecida, pensei eu.
E logo alto:
- D. Conceição, creio que vão sendo horas, e eu...
- Não, não, ainda é cedo. Vi agora mesmo o relógio; são onze e meia. Tem tempo. Você, perdendo a noite, é capaz de não dormir de dia?
- Já tenho feito isso.
- Eu, não; perdendo uma noite, no outro dia estou que não posso, e, meia hora que seja, hei de passar pelo sono. Mas também estou ficando velha.
- Que velha o quê, D. Conceição?
Tal foi o calor da minha palavra que a fez sorrir. De costume tinha os gestos demorados e as atitudes tranqüilas; agora, porém, ergueu-se rapidamente, passou para o outro lado da sala e deu alguns passos, entre a janela da rua e a porta do gabinete do marido. Assim, com o desalinho honesto que trazia, dava-me uma impressão singular. Magra embora, tinha não sei que balanço no andar, como quem lhe custa levar o corpo; essa feição nunca me pareceu tão distinta como naquela noite. Parava algumas vezes, examinando um trecho de cortina ou consertando a posição de algum objeto no aparador; afinal deteve-se, ante mim, com a mesa de permeio. Estreito era o círculo das suas idéias; tornou ao espanto de me ver esperar acordado; eu repeti-lhe o que ela sabia, isto é, que nunca ouvira missa do galo na Corte, e não queria perdê-la.
- É a mesma missa da roça; todas as missas se parecem.
- Acredito; mas aqui há de haver mais luxo e mais gente também. Olhe, a semana santa na Corte é mais bonita que na roça. São João não digo, nem Santo Antônio...
Pouco a pouco, tinha-se inclinado; fincara os cotovelos no mármore da mesa e metera o rosto entre as mãos espalmadas. Não estando abotoadas, as mangas, caíram naturalmente, e eu vi-lhe metade dos braços, muitos claros, e menos magros do que se poderiam supor. A vista não era nova para mim, posto também não fosse comum; naquele momento, porém, a impressão que tive foi grande. As veias eram tão azuis, que apesar da pouca claridade, podia contá-las do meu lugar. A presença de Conceição espertara-me ainda mais que o livro. Continuei a dizer o que pensava das festas da roça e da cidade, e de outras coisas que me iam vindo à boca. Falava emendando os assuntos, sem saber por quê, variando deles ou tornando aos primeiros, e rindo para fazê-la sorrir e ver-lhe os dentes que luziam de brancos, todos iguaizinhos. Os olhos dela não eram bem negros, mas escuros; o nariz, seco e longo, um tantinho curvo, dava-lhe ao rosto um ar interrogativo. Quando eu alteava um pouco a voz, ela reprimia-me:
- Mais baixo! Mamãe pode acordar.
E não saía daquela posição, que me enchia de gosto, tão perto ficavam as nossas caras. Realmente, não era preciso falar alto para ser ouvido; cochichávamos os dois, eu mais que ela, porque falava mais; ela, às vezes, ficava séria, muito séria, com a testa um pouco franzida. Afinal, cansou; trocou de atitude e de lugar. Deu volta à mesa e veio sentar-se do meu lado, no canapé. Voltei-me, e pude ver, a furto, o bico das chinelas; mas foi só o tempo que ela gastou em sentar-se, o roupão era comprido e cobriu-as logo. Recordo-me que eram pretas. Conceição disse baixinho:
- Mamãe está longe, mas tem o sono muito leve; se acordasse agora, coitada, tão cedo não pegava no sono.
- Eu também sou assim.
- O quê? Perguntou ela inclinando o corpo para ouvir melhor.
Fui sentar-me na cadeira que ficava ao lado do canapé e repeti a palavra. Riu-se da coincidência; também ela tinha o sono leve; éramos três sonos leves.
- Há ocasiões em que sou como mamãe: acordando, custa-me dormir outra vez, rolo na cama, à toa, levanto-me, acendo vela, passeio, torno a deitar-me, e nada.
- Foi o que lhe aconteceu hoje.
- Não, não, atalhou ela.
Não entendi a negativa; ela pode ser que também não a entendesse. Pegou das pontas do cinto e bateu com elas sobre os joelhos, isto é, o joelho direito, porque acabava de cruzar as pernas. Depois referiu uma história de sonhos, e afirmou-me que só tivera um pesadelo, em criança. Quis saber se eu os tinha. A conversa reatou-se assim lentamente, longamente, sem que eu desse pela hora nem pela missa. Quando eu acabava uma narração ou uma explicação, ela inventava outra pergunta ou outra matéria, e eu pegava novamente na palavra. De quando em quando, reprimia-me:
- Mais baixo, mais baixo...
Havia também umas pausas. Duas outras vezes, pareceu-me que a via dormir; mas os olhos, cerrados por um instante, abriam-se logo sem sono nem fadiga, como se ela os houvesse fechado para ver melhor. Uma dessas vezes creio que deu por mim embebido na sua pessoa, e lembra-me que os tornou a fechar, não sei se apressada ou vagarosamente. Há impressões dessa noite, que me aparecem truncadas ou confusas. Contradigo-me, atrapalho-me. Uma das que ainda tenho frescas é que, em certa ocasião, ela, que era apenas simpática, ficou linda, ficou lindíssima. Estava de pé, os braços cruzados; eu, em respeito a ela, quis levantar-me; não consentiu, pôs uma das mãos no meu ombro, e obrigou-me a estar sentado. Cuidei que ia dizer alguma coisa; mas estremeceu, como se tivesse um arrepio de frio, voltou as costas e foi sentar-se na cadeira, onde me achara lendo. Dali relanceou a vista pelo espelho, que ficava por cima do canapé, falou de duas gravuras que pendiam da parede.
- Estes quadros estão ficando velhos. Já pedi a Chiquinho para comprar outros.
Chiquinho era o marido. Os quadros falavam do principal negócio deste homem. Um representava "Cleópatra"; não me recordo o assunto do outro, mas eram mulheres. Vulgares ambos; naquele tempo não me pareciam feios.
- São bonitos, disse eu.
- Bonitos são; mas estão manchados. E depois francamente, eu preferia duas imagens, duas santas. Estas são mais próprias para sala de rapaz ou de barbeiro.
- De barbeiro? A senhora nunca foi a casa de barbeiro.
- Mas imagino que os fregueses, enquanto esperam, falam de moças e namoros, e naturalmente o dono da casa alegra a vista deles com figuras bonitas. Em casa de família é que não acho próprio. É o que eu penso; mas eu penso muita coisa assim esquisita. Seja o que for, não gosto dos quadros. Eu tenho uma Nossa Senhora da Conceição, minha madrinha, muito bonita; mas é de escultura, não se pode pôr na parede, nem eu quero. Está no meu oratório.
A idéia do oratório trouxe-me a da missa, lembrou-me que podia ser tarde e quis dizê-lo. Penso que cheguei a abrir a boca, mas logo a fechei para ouvir o que ela contava, com doçura, com graça, com tal moleza que trazia preguiça à minha alma e fazia esquecer a missa e a igreja. Falava das suas devoções de menina e moça. Em seguida referia umas anedotas de baile, uns casos de passeio, reminiscências de Paquetá, tudo de mistura, quase sem interrupção. Quando cansou do passado, falou do presente, dos negócios da casa, das canseiras de família, que lhe diziam ser muitas, antes de casar, mas não eram nada. Não me contou, mas eu sabia que casara aos vinte e sete anos.
Já agora não trocava de lugar, como a princípio, e quase não saíra da mesma atitude. Não tinha os grandes olhos compridos, e entrou a olhar à toa para as paredes.
- Precisamos mudar o papel da sala, disse daí a pouco, como se falasse consigo.
Concordei, para dizer alguma coisa, para sair da espécie de sono magnético, ou o que quer que era que me tolhia a língua e os sentidos. Queria e não queria acabar a conversação; fazia esforço para arredar os olhos dela, e arredava-os por um sentimento de respeito; mas a idéia de parecer que era aborrecimento, quando não era, levava-me os olhos outra vez para Conceição. A conversa ia morrendo. Na rua, o silêncio era completo.
Chegamos a ficar por algum tempo, - não posso dizer quanto, - inteiramente calados. O rumor único e escasso, era um roer de camundongo no gabinete, que me acordou daquela espécie de sonolência; quis falar dele, mas não achei modo. Conceição parecia estar devaneando. Subitamente, ouvi uma pancada na janela, do lado de fora, e uma voz que bradava: "Missa do galo! missa do galo!"
- Aí está o companheiro, disse ela levantando-se. Tem graça; você é que ficou de ir acordá-lo, ele é que vem acordar você. Vá, que hão de ser horas; adeus.
- Já serão horas? perguntei.
- Naturalmente.
- Missa do galo! repetiram de fora, batendo.
-Vá, vá, não se faça esperar. A culpa foi minha. Adeus; até amanhã.
E com o mesmo balanço do corpo, Conceição enfiou pelo corredor dentro, pisando mansinho. Saí à rua e achei o vizinho que esperava. Guiamos dali para a igreja. Durante a missa, a figura de Conceição interpôs-se mais de uma vez, entre mim e o padre; fique isto à conta dos meus dezessete anos. Na manhã seguinte, ao almoço, falei da missa do galo e da gente que estava na igreja sem excitar a curiosidade de Conceição. Durante o dia, achei-a como sempre, natural, benigna, sem nada que fizesse lembrar a conversação da véspera. Pelo Ano-Bom fui para Mangaratiba. Quando tornei ao Rio de Janeiro, em março, o escrivão tinha morrido de apoplexia. Conceição morava no Engenho Novo, mas nem a visitei nem a encontrei. Ouvi mais tarde que casara com o escrevente juramentado do marido.

 Fonte: Contos Consagrados - Machado de Assis - Coleção Pretígio - Ediouro - s/d.
1-    Preocupada em retratar a realidade de modo objetivo, quase documental, a prosa realista geralmente é marcada pela precisão do tempo e do espaço e pela narrativa lenta.
a) observe as datas citadas no texto. Quando ocorre a situação vivida por Nogueira? Em que noite, particularmente?
b) Em que cidade e em que lugar ocorrem os fatos?
c) Quanto tempo transcorre desde o momento em que Conceição entra na sala em que está Nogueira até o momento em que ele sai à rua para ir à missa?
d) Pelas lembranças que são narradas, esse tempo parece ter demorado para passar ou parece ter passado rapidamente?

2-    Nos textos em prosa do Realismo, a narrativa normalmente flui lenta, como forma de captar as sutilezas dos diálogos entre personagens, suas reflexões interiores, suas lembranças do passado, entre outros. Em “Missa do galo”, todas as ações e diálogos são perpassados por uma ambiguidade que fica ainda mais acentuada pela lentidão da narrativa.
a) Que tipo de ambiguidade existe no relacionamento entre Conceição e Nogueira?
 b)  Por que a lentidão narrativa acentua essa ambiguidade?

3-    No século XIX, raramente uma mulher conversa com um homem sozinha, principalmente em um ambiente fechado e à noite. Vários elementos contribuem para criar uma crescente atmosfera de intimidade e de atração entre as personagens.
 a) Identifique no texto fatos que comprovem uma intimidade cada vez maior entre Conceição e Nogueira.
b) Observe os espaços ocupados pelas personagens no ambiente. De que forma eles acentuam essa atmosfera de intimidade e atração?
c) Levante hipóteses: Que razões poderiam ter levado Conceição a sentir vontade de viver uma aventura amorosa? E Nogueira?
d) Que fato posterior, relatado no final da história, confirma que Conceição era uma mulher capaz de se interessar por outro homem além do marido?
e) Quais dos seguintes fragmentos evidenciam a atração de Nogueira por Conceição?
• "Que velha o quê, D. Conceição!" 
•  "cochichávamos os dois, e eu mais que eia, porque falava mais"
• “A presença de Conceição espertara-me ainda mais que o livro."
• "ela, que era apenas simpática, ficou linda, ficou lindíssima"
f) Quais dos seguintes fragmentos evidenciam pensamentos e sentimentos contraditórios experimentados por Conceição?
• "Cuidei que ia dizer alguma coisa; mas estremeceu, como se tivesse um arrepio de frio, voltou as costas e foi sentar-se"
• "Depois referiu uma história de sonhos, e afirmou-me que só tivera um pesadelo em criança."
• "Mais baixo! mamãe pode acordar."
• "ela, às vezes, ficava séria, muito séria, com a testa um pouco franzida."
 g) Considerando que Nogueira é o narrador da história e conta os fatos de acordo com suas lembranças e cone sua ótica pessoal, dê sua opinião: Ocorreu ou não algum envolvimento entre Conceição e Nogueira?

4-    A atmosfera de intimidade vai crescendo num percurso de altos e baixos de vaivém, de quebras súbitas, como se espelhasse os movimentos da consciência das personagens, que ora se soltam mais, ora se reprimem. Releia o episódio que, nesse momento, a atmosfera é quebrada e Nogueira sente vontade de ir para a missa. Que associações provavelmente foram feitas pelas duas personagens? 

5-    Observe que Nogueira lê Os três mosqueteiros, obra romântica do escritor francês Alexandre Dumas, uma narrativa de aventuras perfeitamente compatível com a sua idade. Já Conceição lê A Moreninha, obra romântica de Joaquim Manuel de Macedo que narra aventuras amorosas de adolescentes.
a) As obras que as personagens leem retratam um mundo de aventuras, amores e heróis compatíveis com a vida que levam?
b) Que significado, então, deve ter a leitura para elas?

6-     A seguir, são relacionadas as características relativas ao amor e ao herói ou à heroína românticos. Elabore um quadro com as características realistas opostas a elas, exemplificando-as com situações encontradas em "Missa do galo".
Românticos
Realistas
A mulher amada, para o herói romântico, é sinônimo de beleza e perfeição.

O casamento, no Romantismo, normalmente é resultado de um amor profundo e o fim de uma longa trajetória de obstáculos

O amor está acima de todos os interesses; é a mola-mestra que impulsiona e purifica as ações humanas.

O herói romântico geralmente tem caráter forte e comportamento íntegro e linear, que raramente se altera ao longo da história

O herói romântico é um ser especial, dotado de forças ou poderes incomuns.



7-     A prosa realista tem como propósito captar o ser humano em sua totalidade, isto é, tanto exterior quanto interiormente. O retrato interior das personagens — isto é, a focalização de seus conflitos, pensamentos, anseios, reflexões, desejos, etc. — é chamado de introspecção psicológica. Identifique no texto um trecho que evidencie aspectos de introspecção psicológica referente a Nogueira.

8-    O Romantismo supervaloriza o indivíduo e suas particularidades. Já o Realismo, mesmo trabalhando em profundidade a personagem, tende a buscar nela aquilo que é universal, isto é, comum a cada um de nós e que define a nossa condição humana. É possível dizer que a situação vivida pelas personagens Conceição e Nogueira — e toda a carga de emoções e valores que a acompanha — é universal ou particular? Justifique.