Quem
tem medo de mortadela?
Mário Prata
Modismo é conosco mesmo. O brasileiro adora inventar moda. E
todo mundo vai atrás dela. A última do brasileiro é “primeiro mundo”. Os
publicitários nativos inventaram a expressão e agora tudo que nós queremos tem
que ser coisa do “primeiro mundo”.
O carro é do primeiro mundo, a bebida é do primeiro mundo, a
mulher é do primeiro mundo. Cineastas querem fazer filme de primeiro mundo,
diretores de teatro trazem a moda lá da Europa. E os preços, evidentemente,
também são de primeiro mundo.
Será que não nos bastam os exemplos de Portugal, Espanha,
Irlanda e Grécia, que se debruçaram na mamata da CEE e agora enfrentam uma
séria recessão e desemprego?
Por que essa mania, de repente, de querer virar primeiro mundo?
De terceiro para primeiro? Não seria o caso de fazer um estágio, antes, no
segundo mundo?
Os do primeiro mundo adoram as coisas aqui do terceiro. Por
exemplo, a caipirinha. Alemães, ingleses, americanos, suecos caem trôpegos
pelas calçadas de Copacabana. Quer coisa rnais brasileira, mais
terceiromundista, mais caipira e mais barata? Mas já estão avacalhando com ela.
Agora já tem caipirinha de vodca e, pasmem, de rum. Caipirinha sempre foi e
sempre será de cachaça. Coisa de caipira mesmo. E é esta bebida que os europeus
vêm procurar aqui. Mas já meteram a vodca e o rum nela para ficar com cara de
primeiro mundo. Vamos deixar a caipirinha caipira, brasileiros!
Toda essa introdução para chegar à mortadela. Ou mortandela,
como preferem garçons e padeiros. Quer coisa mais brasileira que a mortadela?
Claro que ela veio lá da Itália. Mas tornou-se, talvez pelo baixo preço, o
petisco do brasileiro. O nome vem de murta, uma plantinha italiana que lhe
valeu o nome. Infelizmente o brasileiro acha que mortadela é coisa de pobre, de
faminto. E o que somos nós, cara-pálidas?
A cachaça e a mortadela são produtos do Brasil, do nosso querido
terceiro mundo. Mas acontece que há um preconceito dos patrícios contra a
cachaça e a mortadela. Contra a mortadela o caso é mais grave. Se você oferecer
mortadela numa festa, vão te olhar feio. Você deve estar perto da falência.
Neste Natal e no Reveillon frequentei várias mesas, e em nenhuma
havia mortadela. Queijos de primeiro mundo, vinho de primeiro mundo, perfumes
de primeiro mundo, até um peru argentino eu comi. Mas mortadela que é bom,
nada. Nem uma fatiazinha.
Quando o brasileiro irá assumir que a mortadela é a melhor
entrada do mundo? Quando você for para a Europa, não adianta pedir dead her que
não vai encontrar. Nem muerta dela.
Mas nem tudo está perdido. No dia 1° do ano almocei com o casal
Annette e Tenório de Oliveira Lima, e lá estava a mortadela, fresquinha no
prato rósea. Um limãozinho em cima, um pedacinho de pão e viva o terceiro
mundo, visto lá de cima do apartamento do Morumbi.
No mesmo dia, de noite, fui ao peemedebista Bar Nabuco, debaixo
de frondosas sibipirunas da Praça Vilaboim e estava lá, no cardápio, toda
sem-vergonha, a mortadela brasileira. Achei que estava começando bem o ano. Vai
ser um Ano Bom, como se dizia antigamente. Se os novos-ricos do PMDB estão
comendo mortadela, nem tudo está perdido. No Gargalhada Bar mais para PT, há um
excelente sanduíche de mortadela.
E, nas boas padarias do ramo você ainda encontra a verdadeira
mortadela, aquela que chega no balcão, feita na chapa, sem queimar muito,
servida em pãezinhos saídos do forno.
Vamos
deixar o primeiro mundo para lá. Vamos, este ano, tomar cachaça e comer
mortadela. É muito mais barato ser pobre. Deixemos que o primeiro mundo exploda
entre eles, mesmo tomando uísque escocês e comendo queijo fedido.
Por favor senhores brasileiros primeiro-mundistas, vamos deixar
de frescura. Mortadela é o que há. É um barato.
Feliz 94 para todos vocês. Muita cachaça e muita mortadela.
Apesar de tudo, o primeiro mundo é triste e melancólico. Continuemos felizes e
alegres com a nossa cachaça e a nossa gostosa mortadela.
E que os candidatos à presidência deste nosso país do terceiro
mundo não se esqueçam que o Jânio sempre se elegeu comendo “mortandela” e não
caviar do primeiro mundo.
Publicada no jornal O
Estado de S. Paulo, 5/1/1994
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