domingo, 17 de agosto de 2014

São Bernardo- fragmento- 231

O episódio a ser lido situa-se no final da obra, dois anos após a morte de Madalena. Os amigos deixaram de frequentar a casa. Paulo Honório, concretizando uma antiga ideia de compor um livro com auxílio de pessoas mais entendidas, entrega-se à empreitada de contar a sua história. Após a leitura do fragmento abaixo, responda às questões sobre a obra em questão.

                “Sou um homem arrasado. Doença! Não. Gozo de perfeita saúde. Quando o Costa Brito, por causa de duzentos mil réis que me queria abafar, vomitou os dois artigos, chamou-me doente, aludindo a crimes que me imputam. O Brito da Gazeta era uma besta. Até hoje, graças a Deus, nenhum médico me entrou em casa. Não tenho doença nenhuma.
                O que estou é velho. Cinquenta anos pelo São Pedro. Cinqüenta anos perdidos, cinqüenta anos gastos sem objetivo, a maltratar-me e a maltratar os outros. O resultado é que endureci, calejei, e não é um arranhão que penetra esta casaca espessa e vê ferir cá dentro a sensibilidade embotada.
                Cinquenta anos! Quantas horas inúteis! Consumir-se uma pessoa a vida inteira sem saber para quê! Comer e dormir como um porco! Levantar-se cedo todas as manhãs e sair correndo, procurando comida! E depois guardar para os filhos, para os netos, para muitas gerações. Que estupidez! Que porcaria! Não é bom vir o diabo e levar tudo? [...]
                As janelas estão fechadas. Meia-noite. Nenhum rumor na casa deserta.
                Levanto-me, procuro uma vela, que a luz vai apagar-se. Não tenho sono. Deitar-me rolar no colchão até a madrugada, é uma tortura. Prefiro ficar sentado, concluindo isto. Amanhã não terei com que me entreter.
                Ponho a vela no castiçal, risco um fósforo e acendo-o. sinto um arrepio. A lembrança de Madalena persegue-me. Diligencio afastá-la e caminho em redor da mesa. Aperto as mãos de tal forma que me firo com as unhas, e quando caio em mim estou mordendo os beiços a ponto de tirar sangue.    
                De longe em longe sento-me fatigado e escrevo uma linha. Digo em voz baixa:
                – Estraguei a minha vida, estraguei-a estupidamente.
                A agitação diminui.
                – Estraguei a minha vida estupidamente.
                Penso em Madalena com insistência. Se fosse possível recomeçarmos…Para que enganar-me? Se fosse possível recomeçarmos aconteceria exatamente o que aconteceu. Não consigo modificar-me, é o que mais me aflige.
                A molecoreba de Mestre Caetano arrasta-se por aí, lambuzada, faminta. A Rosa, com a barriga quebrada de tanto parir, trabalha em casa, trabalha no campo e trabalha na cama. O marido é cada vez mais molambo. E os moradores que me restam são uns cambembes como ele.         
                Para ser franco, declaro que esses infelizes não me inspiram simpatia. Lastimo a situação em que se acham, reconheço ter contribuído para isso, mas não vou além. Estamos tão separados! A princípio estávamos juntos, mas esta desgraçada profissão nos distanciou.
                Madalena entrou aqui cheia de bons sentimentos e bons propósitos. Os sentimentos e os propósitos esbarraram com a minha brutalidade e o meu egoísmo.     
                Creio que nem sempre fui egoísta e brutal. A profissão é que me deu qualidades tão ruins.      
                E a desconfiança terrível, que me aponta inimigos em toda a parte! A desconfiança é também conseqüência da profissão.
                Foi este modo de vida que me inutilizou. Sou um aleijado. Devo ter um coração miúdo, lacunas no cérebro, nervos diferentes dos nervos dos outros homens. E um nariz enorme, uma boca enorme, dedos enormes.
                Se Madalena me via assim, com certeza me achava extraordinariamente feio.
                Fecho os olhos, agito a cabeça para repelir a visão que me exibe essas deformidades monstruosas. A vela está quase a extinguir-se. Julgo que delirei e sonhei com atoleiros, rios cheios e uma figura de lobisomem.
                Lá fora há uma treva dos diabos, um grande silêncio. Entretanto o luar entra por uma janela fechada e o nordeste furioso espalha folhas secas no chão. É horrível! Se aparecesse alguém…Estão todos dormindo. Se ao menos a criança chorasse…Nem sequer tenho amizade a meu filho. Que miséria! Casimiro Lopes está dormindo, Marciano está dormindo. Patifes!
                E eu vou ficar aqui, às escuras, até não sei que hora, até que, morto de fadiga, encoste a cabeça à mesa e descanse uns minutos.”

(13.ed. Martins Fontes: São Paulo, 1970. p.241 e 246-8)

1- No final da vida, Paulo Honório admite ser e ter sido um homem bruto, egoísta e insensível. E mais: sente-se feio, um aleijado, um monstro. Lembrando-se de Madalena, chega a ferir-se nas mãos e nos lábios.
a- Identifique, na linguagem do narrador-personagem, traços de sua brutalidade como pessoa.
b- De acordo com o narrador-personagem, de que provém essas características?
c- Nessa explicação, nota-se a influência de uma corrente científica do século XIX. Qual é ela?
d- O que o sentimento de se achar fisicamente monstruoso revela a respeito da condição psicológica e moral de Paulo Honório?
e- Que tipo de desejo inconsciente é revelado no trecho em destaque no texto?
f- Ao fazer um balanço de seu relacionamento com Madalena, Paulo Honório afirma que, se pudesse recomeçar sua vida com ela, tudo aconteceria de novo. Por que ele pensa assim?

2- Segundo o crítico João Luís Lafetá, "São Bernardo" nara a trajetória de um burguês, Paulo Honório, que passara da condição de caixeiro-viajante e guia de cego à de rico proprietário da fazenda   São Bernardo. Para atingir seus objetivos capitalistas, o protagonista elimina todos os empecilhos que se colocam à sua frente, inclusive as pessoas.
Releia o trecho em vermelho e responda: 
a- Que opinião Paulo Honório tem agora sobre o princípio capitalista da acumulação?
b- Karl Marx já apontava, no século XIX, um fenômeno decorrente das relações do sistema capitalista, a coisificação ou reificação, que consiste na extrema importância que se dá ao valor de troca da mercadoria, e não ao seu valor de uso. No plano das relações humanas, o interesse prevalece sobre sentimentos ou princípios morais, e as pessoas passam a ser vistas como coisas, como objetos.
Identifique no texto uma passagem ou situação que evidencie a visão reificada que Paulo Honório tem do mundo.

3- Praticamente sozinho, sem Madalena e abandonado pelos amigos, Paulo Honório consome as horas recordando sua vida e narrando-a em São Bernardo. Identifique um trecho que comprove ser São Bernardo um livro de recordações.

4- Pelo trecho lido da obra, é possível afirmar que São Bernardo alcança um perfeito equilíbrio entre a análise social e a introspecção psicológica? Justifique.

5- São Bernardo assemelha-se, em vários aspectos a Dom Casmurro, de Machado de Assis. Veja este trecho do início da obra de Machado, narrado por Bentinho:
"O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui.
Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá; [...] falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo."
a- Em São Bernardo, Paulo Honório, no fim da vida, é a mesma pessoa?
b- Tente explicar os motivos conscientes e inconscientes que teriam levado o protagonista a reconstruir sua própria história.

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