O episódio a ser lido situa-se no
final da obra, dois anos após a morte de Madalena. Os amigos deixaram de
frequentar a casa. Paulo Honório, concretizando uma antiga ideia de compor um
livro com auxílio de pessoas mais entendidas, entrega-se à empreitada
de contar a sua história. Após a leitura do fragmento abaixo, responda às
questões sobre a obra em questão.
“Sou um homem arrasado. Doença! Não. Gozo de perfeita saúde. Quando o Costa
Brito, por causa de duzentos mil réis que me queria abafar, vomitou os dois
artigos, chamou-me doente, aludindo a crimes que me imputam. O Brito da Gazeta
era uma besta. Até hoje, graças a Deus, nenhum médico me entrou em casa.
Não tenho doença nenhuma.
O que estou é velho. Cinquenta anos pelo São Pedro. Cinqüenta anos
perdidos, cinqüenta anos gastos sem objetivo, a maltratar-me e a maltratar os
outros. O resultado é que endureci, calejei, e não é um arranhão que penetra
esta casaca espessa e vê ferir cá dentro a sensibilidade embotada.
Cinquenta anos! Quantas horas inúteis! Consumir-se uma pessoa a vida inteira
sem saber para quê! Comer e dormir como um porco! Levantar-se cedo todas as
manhãs e sair correndo, procurando comida! E depois guardar para os filhos,
para os netos, para muitas gerações. Que estupidez! Que porcaria! Não é bom vir
o diabo e levar tudo? [...]
As janelas estão fechadas. Meia-noite. Nenhum rumor na casa deserta.
Levanto-me, procuro uma vela, que a luz vai apagar-se. Não tenho sono.
Deitar-me rolar no colchão até a madrugada, é uma tortura. Prefiro ficar
sentado, concluindo isto. Amanhã não terei com que me entreter.
Ponho a vela no castiçal, risco um fósforo e acendo-o. sinto um arrepio. A
lembrança de Madalena persegue-me. Diligencio afastá-la e caminho em redor da
mesa. Aperto as mãos de tal forma que me firo com as unhas, e quando caio em
mim estou mordendo os beiços a ponto de tirar sangue.
De longe em longe sento-me fatigado e escrevo uma linha. Digo em voz baixa:
– Estraguei a minha vida, estraguei-a estupidamente.
A agitação diminui.
– Estraguei a minha vida estupidamente.
Penso em Madalena com insistência. Se fosse possível recomeçarmos…Para que
enganar-me? Se fosse possível recomeçarmos aconteceria exatamente o que
aconteceu. Não consigo modificar-me, é o que mais me aflige.
A molecoreba de Mestre Caetano arrasta-se por aí, lambuzada, faminta. A Rosa,
com a barriga quebrada de tanto parir, trabalha em casa, trabalha no campo
e trabalha na cama. O marido é cada vez mais molambo. E os moradores que me
restam são uns cambembes como
ele.
Para ser franco, declaro que esses infelizes não me inspiram simpatia. Lastimo
a situação em que se acham, reconheço ter contribuído para isso, mas não vou
além. Estamos tão separados! A princípio estávamos juntos, mas esta desgraçada
profissão nos distanciou.
Madalena entrou aqui cheia de bons sentimentos e bons propósitos. Os
sentimentos e os propósitos esbarraram com a minha brutalidade e o meu
egoísmo.
Creio que nem sempre fui egoísta e brutal. A profissão é que me deu qualidades
tão ruins.
E a desconfiança terrível, que me aponta inimigos em toda a parte! A
desconfiança é também conseqüência da profissão.
Foi este modo de vida que me inutilizou. Sou um aleijado. Devo ter um
coração miúdo, lacunas no cérebro, nervos diferentes dos nervos dos outros
homens. E um nariz enorme, uma boca enorme, dedos enormes.
Se Madalena me via assim, com certeza me achava extraordinariamente feio.
Fecho os olhos, agito a cabeça para repelir a visão que me exibe essas
deformidades monstruosas. A vela está quase a extinguir-se. Julgo que
delirei e sonhei com atoleiros, rios cheios e uma figura de lobisomem.
Lá fora há uma treva dos diabos, um grande silêncio. Entretanto o luar
entra por uma janela fechada e o nordeste furioso espalha folhas secas no chão.
É horrível! Se aparecesse alguém…Estão todos dormindo. Se ao menos a criança
chorasse…Nem sequer tenho amizade a meu filho. Que miséria! Casimiro Lopes está
dormindo, Marciano está dormindo. Patifes!
E eu vou ficar aqui, às escuras, até não sei que hora, até que, morto de
fadiga, encoste a cabeça à mesa e descanse uns minutos.”
(13.ed. Martins Fontes: São
Paulo, 1970. p.241 e 246-8)
1- No final da vida, Paulo Honório admite ser e ter sido um homem bruto, egoísta e insensível. E mais: sente-se feio, um aleijado, um monstro. Lembrando-se de Madalena, chega a ferir-se nas mãos e nos lábios.
a- Identifique, na linguagem do narrador-personagem, traços de sua brutalidade como pessoa.
b- De acordo com o narrador-personagem, de que provém essas características?
c- Nessa explicação, nota-se a influência de uma corrente científica do século XIX. Qual é ela?
d- O que o sentimento de se achar fisicamente monstruoso revela a respeito da condição psicológica e moral de Paulo Honório?
e- Que tipo de desejo inconsciente é revelado no trecho em destaque no texto?
f- Ao fazer um balanço de seu relacionamento com Madalena, Paulo Honório afirma que, se pudesse recomeçar sua vida com ela, tudo aconteceria de novo. Por que ele pensa assim?
2- Segundo o crítico João Luís Lafetá, "São Bernardo" nara a trajetória de um burguês, Paulo Honório, que passara da condição de caixeiro-viajante e guia de cego à de rico proprietário da fazenda São Bernardo. Para atingir seus objetivos capitalistas, o protagonista elimina todos os empecilhos que se colocam à sua frente, inclusive as pessoas.
Releia o trecho em vermelho e responda:
a- Que opinião Paulo Honório tem agora sobre o princípio capitalista da acumulação?
b- Karl Marx já apontava, no século XIX, um fenômeno decorrente das relações do sistema capitalista, a coisificação ou reificação, que consiste na extrema importância que se dá ao valor de troca da mercadoria, e não ao seu valor de uso. No plano das relações humanas, o interesse prevalece sobre sentimentos ou princípios morais, e as pessoas passam a ser vistas como coisas, como objetos.
Identifique no texto uma passagem ou situação que evidencie a visão reificada que Paulo Honório tem do mundo.
3- Praticamente sozinho, sem Madalena e abandonado pelos amigos, Paulo Honório consome as horas recordando sua vida e narrando-a em São Bernardo. Identifique um trecho que comprove ser São Bernardo um livro de recordações.
4- Pelo trecho lido da obra, é possível afirmar que São Bernardo alcança um perfeito equilíbrio entre a análise social e a introspecção psicológica? Justifique.
5- São Bernardo assemelha-se, em vários aspectos a Dom Casmurro, de Machado de Assis. Veja este trecho do início da obra de Machado, narrado por Bentinho:
"O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui.
Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá; [...] falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo."
a- Em São Bernardo, Paulo Honório, no fim da vida, é a mesma pessoa?
b- Tente explicar os motivos conscientes e inconscientes que teriam levado o protagonista a reconstruir sua própria história.
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